No último fim de semana, a Ferrari escreveu mais um capítulo memorável nas 24 Horas de Le Mans. Pela terceira vez seguida, o hipercarro 499P levou a escuderia italiana ao topo do pódio na tradicional prova de endurance — um feito que assegura à Ferrari o privilégio de manter definitivamente o troféu da vitória.
Esse tricampeonato é a primeira sequência triunfal da Ferrari em Le Mans desde os anos 1960, quando o Cavallino Rampante conquistou seis edições seguidas, entre 1960 e 1965. Agora, com o 499P, a Ferrari renova sua lenda no asfalto do Circuito de la Sarthe.
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Fonte: Jason Vogel
O 1º lugar ficou com o carro #83 da equipe AF Corse, pilotado por Yifei Ye, Phil Hanson e Robert Kubica — trio que também entra para a história por garantir as primeiras vitórias de um chinês (Ye) e de um polonês (Kubica) na clássica disputa.
Com sua marcante pintura Giallo Modena (amarelo Modena), o 499P #83 suportou a pressão dos rivais, especialmente do Porsche 963 #6, e entregou um desempenho sem falhas. Enquanto isso, o Ferrari 499P #51 terminou em terceiro lugar, e seu gêmeo #50 foi desclassificado por uma infração técnica: a ausência de quatro parafusos de fixação na asa traseira.

Ferrari 499P – AF Corse 83
Foto de: Jason Vogel
Vale dizer que o regulamento do Mundial de Endurance (WEC) permite a participação de apenas dois carros da equipe oficial de fábrica — no caso, os #50 e #51. Para pôr um terceiro 499P no páreo, a Ferrari utilizou uma “equipe cliente” (escuderia privada): a AF Corse, que alinhou o #83.
O detalhe é que a AF Corse é a responsável técnica pelos três carros. Tanto que o time oficial de fábrica se chama “Ferrari AF Corse”, enquanto a equipe cliente leva apenas o nome “AF Corse”. A melhor parte é que esse “AF” vem de… Amato Ferrari! É um ex-piloto italiano que afirma não ter qualquer parentesco com o Commendatore Enzo. A conexão seria apenas profissional, não familiar.
De toda forma, o domínio nas pistas nos últimos três anos é fruto do projeto Ferrari 499P LMH. Mas como é esse carro?

Ferrari 499P – o carro 50 foi o vitorioso em Le Mans 2024
Foto de: Jason Vogel
LMH e LMDh
Para começar a parte técnica, vale uma explicação a quem não está muito familiarizado com esse tipo de competição. Os protótipos LMH (Le Mans Hypercar) e LMDh (Le Mans Daytona h) representam duas abordagens distintas para as principais categorias no WEC e na International Motor Sports Association (IMSA).
O regulamento LMH é usado por marcas como Ferrari, Toyota e Peugeot. Permite o desenvolvimento de um protótipo totalmente próprio, incluindo chassi, aerodinâmica e o sistema híbrido (que não é obrigatório, como se vê no Aston Martin Valkyrie). Oferece ampla liberdade técnica — mas com custo mais elevado. Os LMH podem ter tração integral (graças ao motor elétrico no eixo dianteiro) e potência combinada limitada a algo entre 643 cv e 696 cv, dependendo do balance of performance (BoP).

Foto de: Jason Vogel
Já os protótipos LMDh, como os de Porsche, BMW, Cadillac e Alpine, seguem uma filosofia mais controlada de custos: o chassi é fornecido por uma das quatro fabricantes homologadas (Oreca, Dallara, Ligier ou Multimatic), enquanto a equipe pode desenvolver seu próprio motor a combustão e software de gerenciamento híbrido — o sistema elétrico é padrão e idêntico para todos. Embora a potência máxima seja semelhante à dos LMH, os LMDh tendem a ser mais leves e baratos de produzir, sendo mais populares entre fabricantes que competem nas duas séries (WEC e IMSA).
Em resumo: LMH oferece liberdade total de projeto e tração nas quatro rodas (ainda que temporária), enquanto o LMDh aposta na padronização parcial para reduzir custos e facilitar a entrada de fabricantes, e só tem tração traseira.
Para equalizar a performance dos dois tipos de carros, o BoP se vale de sensores de torque e eletrônica muito sofisticada para garantir que todos estejam atendendo aos requisitos de desempenho estipulados. Sem o BoP, não seria possível ter corridas tão disputadas com protótipos de concepção tão diversa. O 499P é um LMH.

O motor V6 – em ângulo bem aberto – deriva das Ferrari 296 GTB de rua
Foto de: Jason Vogel
Movido a vinho. Ou quase isso…
O nome “499P” refere-se à cilindrada unitária de seus seis cilindros — 498,66 cm³ arredondados para 499 cm³ — totalizando 2.992 cm³. Trata-se de um V6 bem aberto, com ângulo de 120° entre as bancadas, sobrealimentado por dois turbocompressores montados em paralelo no centro do “V” (disposição que melhora a eficiência térmica e reduz o turbo lag). É, basicamente, o mesmo motor F163 usado no 296 GTB de rua e no 296 GT3 de competição, e tem a potência máxima de 500 kW (680 cv), atendendo ao regulamento.
Enquanto nos Ferrari 296 o V6 é montado sobre um subchassi, no 499P o motor é fixado diretamente no monocoque de fibra de carbono (desenvolvido em parceria com a Dallara). O câmbio sequencial de sete marchas, fornecido pela britânica Xtrac, e a suspensão traseira também são elementos do conjunto estrutural.

Foto de: Jason Vogel
O sistema híbrido foi desenvolvido especificamente para o 499P. Montado no eixo dianteiro vai um motor elétrico-gerador (MGU-K) que rende até 200 kW (272 cv). Esse motor elétrico, contudo, só entra em ação acima de uma velocidade mínima imposta pela FIA — inicialmente fixada em 120 km/h, mas posteriormente ajustada de acordo com o balance of performance (BoP). A energia é armazenada numa bateria de alta voltagem (900 volts), recarregada durante as fases de aceleração e frenagem. Por questões de confiabilidade, os sistemas eletrônicos são da Bosch.
A tração integral temporária resultante garante melhor aderência e estabilidade, especialmente em curvas. Sem restrições, o conjunto poderia render 952 cv no total, porém a potência combinada é limitada a 500 kW (680 cv) durante a corrida — ou seja: a mesma potência máxima do V6.

Foto de: Jason Vogel
Com base nos números da edição de 2025, o 499P teve um consumo de 2,57 km/l durante a prova. E não se trata de gasolina, mas de Excellium Racing 100: um biocombustível fabricado pela Total, sem nenhuma gota de petróleo em sua composição. Trata-se de um tipo de etanol obtido de resíduos da indústria do vinho (oriundos da agricultura francesa). Desde 2022, o regulamento do FIA WEC determina o uso de combustível 100% renovável nos carros.
A frenagem dianteira é controlada por brake-by-wire, com uma interface eletrônica entre o pedal e as pinças, crucial para a integração com o sistema de recuperação de energia (ERS). Esse conjunto permite um controle preciso das frenagens, essencial para o gerenciamento dos pneus, a estabilidade nas curvas e a eficiência energética ao longo das 24 horas da prova.

Interior da versão 499P Modificata 2023
Foto de: Jason Vogel
Os enormes discos, de 380 mm na dianteira e 355 mm na traseira, são de carbono-carbono, pensados para pesar pouco, durar muito e manter a estabilidade em altas temperaturas (entre 400 e 1.000ºC). Por questões de custo, só os protótipos são autorizados a usar esse tipo de freio na competição.
Todos os 21 protótipos da Hypercar nas 24 Horas de Le Mans usam pneus Michelin Pilot Sport de chuva (faixa lateral azul) ou slicks em três compostos: duro (banda vermelha), médio (amarela) e macio (branca).

Ferrari 499P Modificata 2023 – versão civil para track days
Foto de: Jason Vogel
680 cv para levar 1.030 kg
O volante vai em posição central. Como nos F-1, é repleto de botões, seletores giratórios, interruptores e traz uma pequena tela LCD no centro, permitindo ajustes em tempo real das configurações do carro. As trocas de marcha são feitas em paddle shifters.
O banco concha é feito de fibra de carbono e fixo. Já a pedaleira é ajustável de acordo com a estatura dos pilotos (são três revezando por carro). O painel é simplificado ao máximo, exibindo apenas as informações digitais essenciais (marcha engatada, velocidade, status do sistema híbrido), além de uma tela para a câmera de visão traseira.

Ferrari 499P – AF Corse 83 – campeões 2025
Foto de: Jason Vogel
Seguindo o regulamento, o peso mínimo do carro é de 1.030 quilos. A carroceria do 499P foi projetada para unir eficiência aerodinâmica à identidade visual Ferrari. Sob supervisão do Centro Stile Ferrari, liderado por Flavio Manzoni, o protótipo traz elementos inspirados nos carros de Fórmula 1, como o nariz baixo e a tea-tray (nome da asa dianteira, em alusão a uma bandeja de chá).
Nos carros #50 e #51, a pintura em vermelho corsa com uma faixa diagonal em “Giallo Modena” (amarelo Modena) evoca explicitamente o visual dos Ferrari 312 PB do início dos anos 1970 — o último protótipo de Maranello a disputar oficialmente provas de endurance antes da retirada determinada por Enzo Ferrari.

Ferrari 499P 2025 – carro 50
Foto de: Jason Vogel
Aliás, o número #50 foi escolhido para marcar o retorno da equipe oficial a Le Mans 50 anos após sua saída (1973-2023), enquanto o #51 é, naturalmente, o número “irmão”. Já o carro #83, vencedor em 2025, usou o esquema de pintura inverso, com Giallo Modena predominante e detalhes em Rosso Corsa.
E, assim, o 499P #83 da equipe AF Corse completou 387 voltas no Circuito de la Sarthe, em 24 horas, 2 minutos e 53 segundos. Foram 5.272 quilômetros, à velocidade média de 219,3 km/h. Números dignos da tradição esportiva Ferrari na mãe de todas as corridas.